domingo, 21 de abril de 2019

A última bolacha do pacote

Imagem surrupiada da iStock






A última bolacha do pacote


Não somos 

O Homo sapiens pertence a uma família. Esse fato banal era um dos segredos mais bem guardados da história. Durante muito tempo, o Homo sapiens preferiu conceber a si mesmo como separado dos animais, um órfão destituído de família, carente de primos ou irmãos e, o que é mais importante, sem pai nem mãe. Mas isso simplesmente não é verdade. Gostemos ou não, somos membros de uma família grande e particularmente ruidosa chamada grandes primatas. Há apenas 6 milhões de anos, uma mesma fêmea teve duas filhas. Uma delas se tornou ancestral de todos os chimpanzés; a outra é nossa avó. 

Não somos o mais importante 

O Homo sapiens guardou um segredo ainda mais perturbador. Não só temos inúmeros primos não civilizados, como um dia também tivemos irmãos e irmãs. Costumamos pensar em nós mesmos como os únicos humanos, pois, nos últimos 10.000 anos, nossa espécie foi a única espécie humana a existir. Porém, o verdadeiro significado da palavra humano é “animal pertencente ao gênero Homo”, e, antes haviam várias outras espécies desse gênero além do Homo sapiens. Os humanos surgiram na África há cerca de 2,5 milhões de anos, a partir de um gênero superior de primatas chamado Australopithecus. Alguns desses humanos arcaicos deixaram sua terra natal para se aventurar em outros continentes. Em cada local desenvolveu-se uma espécie diferente de humano. A Europa e a Ásia Ocidental deram origem a espécie popularmente conhecida como neandertal. A parte oriental da Ásia foi povoada pelo Homo erectus. Na ilha de Java viveu o Homo soloensis. Em outra ilha da Indonésia – a pequena ilha de Flores – viveram os minúsculos Homo florensiensis. Na Sibéria, outro irmão perdido foi resgatado do esquecimento, o Homo denisova, descoberto somente em uma escavação em uma caverna em 2010. Quantos irmãos perdidos ainda esperam ser descobertos? Todas essas espécies pertenciam ao gênero humano. Todos eram seres humanos. Enquanto essas espécies evoluíam na Europa e na Ásia; a África, o berço da humanidade, continuou a nutrir numerosas novas espécies, como o Homo rudolfensis, o Homo ergaster e finalmente nossa própria espécie, que sem modéstia alguma, denominamos Homo sapiens, o homem sábio. 

Não somos o mais importante em um mundo que poderá 

É uma falácia comum conceber essas espécies dispostas em uma linha reta de descendência. Esse modelo linear dá a impressão equivocada de que, em cada momento apenas uma espécie humana habitou a Terra e de que todas as espécies anteriores foram meros modelos de nós mesmos. A verdade é que de 2 milhões a 10 mil anos atrás o mundo era habitado por pelo menos 6 espécies humanas diferentes ao mesmo tempo. É nossa exclusividade atual que é peculiar – e talvez incriminadora. Por que todas espécies diferentes da nossa desapareceram? Seria o Homo sapiens responsável por essa extinção? Nós, sapiens, temos boas razões para reprimir a lembrança de nossos irmãos. A tolerância não é uma marca registrada da nossa espécie. Nos tempos modernos, pequenas diferenças têm sido suficiente para levar um grupo de sapiens a tentar exterminar outro grupo. Nossos antepassados teriam sido mais tolerantes para com uma espécie humana totalmente diferente? É bem possível que, quando os sapiens encontraram os neandertais, o resultado tenha sido a primeira e mais significativa campanha de limpeza étnica da história. Imagine o que poderia ter acontecido se as outras espécies tivessem sobrevivido ao nosso lado. Que tipo de cultura, sociedade e estrutura política teriam surgido em um mundo em que várias espécies humanas coexistissem? Nos últimos 10 mil anos, o Homo sapiens esteve tão acostumado a ser a única espécie humana que é difícil para nós concebermos qualquer outra possibilidade. Quando Darwin sugeriu que o Homo sapiens era apenas mais uma espécie animal, as pessoas ficaram furiosas. Ainda hoje muitos se recusam a acreditar nisso. Se os neandertais tivessem sobrevivido, ainda conceberíamos a nós mesmos como uma criatura única? Talvez seja exatamente por isso que nossos ancestrais eliminaram os neandertais. Eles eram similares demais para se ignorar, mas diferentes demais para se tolerar. 

Não somos o mais importante em um mundo que poderá, de forma melhor, com certeza 

Se a culpa é dos sapiens ou não, o fato é que tão logo eles chegavam a um novo local, a população nativa e a megafauna eram extintas. Nossos irmãos deixaram pra trás alguns ossos, ferramentas de pedras, uns poucos genes em nosso DNA e uma porção de perguntas sem resposta. Também deixaram a nós, Homo sapiens, a última e única espécie humana. Os sapiens ascenderam ao topo tão rapidamente que o ecossistema não teve tempo de se ajustar. Os próprios humanos não conseguiram se ajustar. A maior parte dos grandes predadores do planeta são criaturas grandiosas, cheias de confiança em si mesmas, adquirida durante milhões de anos de supremacia, O sapiens, diferentemente, está mais para um ditador de uma república de bananas, tendo sido até tão pouco tempo atrás um dos oprimidos das savanas. Somos tomados por medos e ansiedades quanto à nossa posição, o que nos torna duplamente cruéis e perigosos. 

Não somos o mais importante em um mundo que poderá, de forma melhor, com certeza, existir sem a nossa presença.

Partes de texto e resumo da introdução do livro Sapiens, Uma breve história da humanidade de Yuval Noah Harari, intercaladas com frase do antropólogo José Rodrigues (em vermelho).


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